quarta-feira, 14 de novembro de 2007

O glamour da zona decadente

As disparidades entre o ontem e o hoje na zona do meretrício

1970. O então governador Alacid Nunes desce a rua Riachuelo em direção ao palácio Antônio Lemos. Em uma das esquinas, a prostituta, amanhecida e ainda meio bêbada, levanta a saia, expõe a mercadoria e convida:
- Ei, governador! Vem chupar essa buceta aqui, vem!
O incidente foi a gota d`água em um copo que há tempos estava prestes a transbordar. Ofendido e constrangido, o governador ordena o fechamento da zona. A partir desse fato a ditadura passou a intervir na área do meretrício, manteve cerca de 2.800 prostitutas confinadas dentro de suas estreitas ruas. Militares passam a vigiar dia e noite todo o perímetro e as profissionais do sexo ficam em estado de sítio, isoladas do resto da cidade. A situação perdura por três anos, até que unidas, conseguem uma ordem judicial que lhes devolvem o direito de ir e vir na cidade. Porém a zona nunca mais foi a mesma.
Com a liberação sexual nos anos 70, onde o sexo já começa a não ser considerado mais um tabu, especialmente pelas mulheres, a zona passa a existir hoje para um homem mais carente. As grandes damas, amantes de homens que detinham um alto poder aquisitivo já não mais existem. Assim como a vida boêmia nos glamourosos cabarets, agora, permanecem apenas na lembrança.
Porém, essa decadência traz também a organização. O Grupo de Mulheres Prostitutas da Área Central (Gempac) surge nos anos 80 para trazer informações e auxílio a trabalhadoras do sexo. Com o advento da AIDS, e a “popularização” das DSTs, puta vira sinônimo de doença. No coração da zona, a organização instala-se no casarão onde funcionava o Rola Drink’s, cabaret popular, conhecido na área pelo barulho, brigas e visitas da polícia. Neste local hoje há distribuição gratuita de preservativos, orientação psicológica e cursos são oferecidos às prostitutas, com o objetivo de prepará-las para as novas exigências do “mercado”.
Quem anda a noite pelo bairro da Campina não mais sente o cheiro de laquê e perfumes franceses. A região hoje exala um odor forte de mijo, é referencial de tráfico de drogas e ruas que exibem um cenário de mendigos, pivetes, bares popularizados e prostitutas de todas as idades que vendem seus corpos por até R$ 5,00. A decadência econômico-social se instala no centro da cidade. Mas quem ali viveu nos anos 50 e 60 não pode e não quer esquecer.

O Glamour

A luz vermelha ocupa a escuridão da noite, música alta exigindo mais da voz de quem tenta atenção, um espelho de porte considerável exaltando a vaidade que ocupa aquele quartinho romântico, maior testemunha do pecado constante. Na frente desse espelho ela se arruma, se maquia e se perfuma, para todos e para qualquer um. Esse era o camarim onde as estrelas da vida real se preparavam para a longa noite que as esperava.
Entre o desejo e a necessidade, centenas de mulheres tomavam as rédeas de sua própria vida e em um dos períodos mais machistas da história do Pará, provavam sua força e transformavam grandes heróis do estado em meninos ingênuos perdidos entre a excitação e o poder.
Belém, século XIX, a zona cresce junto com a população da cidade e vive seu apogeu. Quando não se tinha nada para fazer e muito dinheiro para gastar, o sexo se tornava moeda de troca e quem o dominava e sabia fazer uso dele, lucrava. Inicia-se assim o comercio de prazeres, onde tudo pode acontecer e tem seu preço. Casarões de arquitetura imponente recebiam cedo da noite os primeiros rapazes em busca do proibido e definiam o bairro da Campina com uma estrutura ao mesmo tempo pomposa e comercial.
Sendo a única atração noturna da cidade, a zona não se resumia somente a esse tipo de relação de mercado, mas sim a espetáculos regados à música, dança e outros tipos de diversão, o que levava diversos casais a aproveitarem juntos a noite na zona. Por outro lado, esse tipo de publico exigia um comportamento mais intelectualizado por parte das anfitriãs, coisa que os próprios estrangeiros também procuravam, consumiam e patrocinavam. A procura destes era tão grande que em Belém, diversas casas mais sofisticadas eram reservadas a eles, fato este que por si só cobrava dessas meninas o mínimo de conhecimento sobre outros idiomas, isso é, quando elas mesmas não eram importadas.
A Campina se tornava uma torre de babel de luxo e exalava perfumes diversos. Com um tom surreal no coração de uma cidade provinciana mas promissora, as mulheres da zona enriqueciam, roubavam a cena e deixavam sua marca na história.
Quem nasceu primeiro: A zona ou a Igreja?
“Onde começa uma cidade, começa uma zona!” afirma Lourdes Barreto, prostituta das antigas que se tornou referência devido as tentativas de revitalização da zona. A informação de que a prostituição é a profissão feminina mais antiga do mundo responde a pergunta acima, porém, a referida profissão encontrou em diversas religiões seu arqui-rival.
Nascida de uma necessidade social, a prostituição foi viabilizada pelo mercantilismo que possibilitava grandes acúmulos de riqueza de um lado e absoluta pobreza de outro. Homens pagavam mulheres pelo sexo por diferentes motivos, geralmente ligados à sua classe. Os mais pobres simplesmente não tinham dinheiro para manter uma esposa e constituir família, os da classe média trabalhadora, muitas vezes ocupados demais em suas funções, preferiam pagar pelo sexo à arranjar uma esposa e constituir família. Já os mais ricos, gostavam de desfrutar de relações com diferentes mulheres sem precisar construir um dispendioso harém particular.Em qualquer das situações, era sempre economicamente vantajoso recorrer aos serviços de uma prostituta.
Mas não se engane, essas profissionais sempre foram vítimas de perseguição. Em todo os lugares e em todas as épocas. Discriminadas pelo senso de moral colocado pelas religiões, as prostitutas já foram submetidas ás mais diversas exigências, que vão desde cadastros especiais ao uso de roupas que as diferenciassem das “demais mulheres honestas”.
No Brasil, o preconceito baseia-se nas doutrinas da Igreja Católica, pois a prostituição ameaça a monogamia do casamento (sacramento que dá origem a célula mais importante da religião: a família), prima pelo prazer e corrompe o ato sagrado da reprodução. Contudo, as necessidades humanas permitem que a “indústria da culpa”, que movimenta a Igreja desde sempre, continue funcionando a pleno vapor, afinal, o que teríamos para arrepender e confessar se não pecássemos em primeiro lugar?
A igreja do Rosário dos Homens Pretos foi construída dentro da, já funcional, primeira zona de Belém. E essa paróquia foi responsável por um combate ferrenho às funções da zona, ora por acolhimento dos grupos de senhoras, que distribuíam cestas básicas e aconselhavam as “pobres pecadoras” do local, ora por pura repressão, incorporando e demolindo diversos bordéis, que alegavam terem sido construídos em terreno da Igreja.
Se na batalha Igreja Católica VS. Zona da Riachuelo, a Igreja está rindo por último; na guerra travada pela mesma à prostituição, ainda apanha de lavada. Diariamente, em todo o mundo, moças chegam, por diversos motivos, ás zonas de meretrício. E essa realidade não está perto de mudar, pois, em nossa sociedade ainda mercantilista, onde se iniciar uma cidade, começará também uma zona.

A zona nos palcos

O Grupo Cuíra de Teatro, cuja sede fica no coração da zona, criou o espetáculo Laquê. A peça retrata no texto a história real de uma garota de programa que se apaixonou por um marinheiro e, depois de descobrir que ele se casaria com outra, ateou fogo em si mesma e morreu. A encenação se passa na década de 50, época áurea da zona no meretrício, e é ambientada no carnaval - com direito a marchinhas como trilha sonora, cantadas pelos atores. Wlad Lima e Cláudio Barros, os diretores do espetáculo, incluíram moradores da zona e garotas de programa no elenco, como uma forma de quebrar preconceitos e auxiliar na inclusão social. O espetáculo investe também na tentativa de humanizar a prostituição. "Prostituta não é só corpo não. Prostituta também é gente, tem alma, se apaixona. Prostituta assiste à novela e fica sonhando com a vida que as prostitutas têm na televisão", diz uma personagem durante a peça. Segundo Cláudio Barros, o objetivo do Grupo Cuíra é promover a "desmarginalização" da zona e aproximar o público de classe média da realidade do lugar, já que "inegavelmente, a zona do meretrício é não só área de prostituição como faz parte do patrimônio histórico-cultural de Belém".
Atriz há 30 anos, diretora de teatro e dança, professora de teatro da UFPA, Wlad Lima conta um pouco da experiência com o espetáculo Laquê, sucesso de público e crítica em Belém.

Tyara: Sabemos que no espetáculo Laquê existe também a atuação de prostitutas da zona do meretrício. Como foi a experiência de trabalhar elas?

Wlad: Foi muito interessante. Fizemos num primeiro momento um teatro laboratório com elas para mais tarde realizarmos uma oficina de um mês para integrar todo o elenco. Elas receberam ainda um cuidado maior através dos apoios conseguidos pelo grupo, como odontológico, limpeza de pele, corte de cabelo, ginecológico entre outros. As prostitutas que atuam na peça são as mais maduras, são mães e até avós. Elas fazem programas durante o dia e a noite estão livres para poderem trabalhar no espetáculo. Foi um trabalho sensacional, o aprendizado não foi apenas para elas e sim para os dois lados.

Tyara: Mas como surgiu a idéia de incluir no elenco as profissionais do sexo?

Wlad: O nosso objetivo é também o trabalho social pela arte e esse engajamento, aplicado à zona do meretrício veio do convívio com a área vizinha. A principal estratégia foi mesclar o elenco para não se saber quem é quem, até por que existem casos ali em que os familiares desconhecem que a prostituição é uma realidade na vida de sua parenta. Por isso tivemos todo o cuidado com a exposição dessas mulheres. Ali elas são atrizes.

Tyara: Quanto tempo de preparação vocês tiveram para o espetáculo estar pronto?

Wlad: Cinco meses de dedicação. Começamos em outubro de 2006 e Laquê estreou em Abril deste ano.

Tyara: Hoje a zona não respira mais o glamour de antigamente. É um perímetro discriminado, marginalizado e de certa forma esquecido. Com a abertura do espaço Cuíra, localizado no coração da zona do meretrício, podemos dizer que houve uma tentativa de resgate da zona?
Existe no bairro da Campina muitos espaços culturais e nos últimos tempos alguns artistas estão comprando casas e transformando em locais que abraçam a arte, como o do Mariano Klautau, o porão “Puta merda” na minha casa, o fotoativa do Miguel Chikaoka, Basa entre outros. O grande barato do espaço Cuíra, além da maior acessibilidade econômica ao público, é fazer as pessoas refletirem sobre o lugar. Desenvolver um trabalho social por meio da arte e através dos temas apresentados nos espetáculos fomentar uma reflexão.

Tyara: Você pretende dar continuidade em próximos trabalhos com as prostitutas?

Wlad: Com certeza, por que não continuar? Algumas delas já declararam que gostaram muito da experiência com o teatro e pretendem seguir a carreira de atriz.

Produção dos textos em parceria com Fernanda Martins, Márcio Moreira, Diva Nassar e Camila Barbalho, todos acadêmicos de jornalismo.

13 comentários:

Lucas disse...

Olá. Escrevo porque juro que me surpreendi quando vi o post, porque jamais pensei, eu admito, que tu escreveria tão bem sobre esse tema. Ficou legal o desdobramento do que se tornou o cabaré popular em dias atuais, e também o desenvolvimento da reportagem - acertaste nas sub-retrancas. Talvez não fosse necessário tu usares uma entrevista em formato 'ping-pong' no final, mas não comprometeu muito.
Do ritmo não posso falar muito, cada um tem o seu.
Belo texto, menina.

Beijos.

Wlad Lima disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Wlad Lima disse...

Para: Tyara e os demais autores do post.
Muito bom, valeu o espaço e a delicadeza do tratamento. É com essas conexões que contamos dia-dia. Gostei tanto que abri um espaço em meu blog pessoal e republiquei a matéria. Passem por lá.
Beijos.
Wlad Lima
http://atorcriador.spaces.live.com/

Estuda, Doido! disse...

Esta matéria me lembrou que eu defendia tanto esse povo que meus amigos começaram a me chamar de "michê". É uma profissão como outra qualquer só que as ferramentas de trabalho são muito "protegidas" socialmente. Daí é foda, literalmente.

"A peça retrata no texto a história real de uma garota de programa que se apaixonou por um marinheiro e, depois de descobrir que ele se casaria com outra, ateou fogo em si mesma e morreu."

Que lindo isso. Deve ser muito bom esse espetáculo. Tua matéria me fez criar uma vontade muito grande de ir ver essa apresentação. Matéria que aliás está muito bem escrita. Tá que falta umas crases e alguns lugares, mas tudo bem...(só pra ser chato)hahaha

Gosto do jeito como deixas os teus textos com um pouco de lirismo, e o começo "ao estilo Bukowski" já me ganhou!

Beijos pra ti!

Lívia Mendes disse...

ty!
eu,ao contrário,não me surpreendi com a beleza do texto, sei que és capaz de muito mais!
parabéns pra vcs, orgulho da jlv11! =)
lindaaaaaaaaaaaaaa!

Camila Barbalho disse...

Olha, o nosso texto... Credo, depois de relê-lo (umas quatro vezes, diga-se) me deu uma saudade horrível desse semestre que nem foi lá dos melhores, mas que promoveu uma aproximação muito legal entre a gente - seja literária, seja pessoal. Até os próximos textos.

Um beijo pra ti, Tyka Maria!

Camila Barbalho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Camila Barbalho disse...

Ô filha, tira a poeira do seu blog!

=D
§=********

Anônimo disse...

Nossa! Não conhecia nada sobre o assunto abordado, comecei a ler por pura consideração a minha amiga Tyara. Mas com o desenvolvimento do texto fui entrando no cenário de uma maneira quase que automática! É incrivel como a evolução do texto proporciona uma leitura muito gostosa e confortável! Aqui como já falei a vc, sou seu fã incondicional agora!! Atualize o quanto antes! Perfeito seu estilo!

Brunno Apolonio disse...

Assisti várias vezes. Demais mesmo.

Vou adicionar o teu blog. Bora atualizar. =P

Se precisar de alguma ajuda pode avisar.

beijo!

Unknown disse...

Amiga, que lindo você escrevendo tão bem.

Saudades!

CK

Mauro Neto disse...

ei bonitona, tu me resolvestes um mistério. Agora sei porque o meu padrinho Alacid Nunes foi morar na zona do baixo meretrício: ele, que mora ali na ó de almeida, deve ter se apaixonado por aquela puta. rsrrs
um beijo.

Diva Nassar disse...

Aaaahh, q lindo! O nosso texto! Tantas saudades dessa turma que faz com que eu nunca consiga tirar essa veia jornalística de mim!
Mutas saudades suas, dona Tyka.
Beijos!!